Afirmando a importância da busca das origens, Gonzáles adverte, entretanto, que não é a palavra dos teólogos que dura para sempre, mas a Palavra que os teólogos estudaram. Por mais que respeitemos nossos antepassados, considerar seus escritos como teologia definitiva equivale a trair exatamente seu mais precioso legado e um dos pontos essenciais da Reforma: a primazia das Escrituras sobre a tradição. Devemos ouvir a tradição, mas também envidar todos os esforços para que as Escrituras ganhem voz contemporânea. Cada geração deve buscar nas Escrituras a voz de Deus para hoje.
Desafiado nessas duas direções — conhecer a tradição e atualizar as Escrituras –, Gonzáles faz o resgate histórico do que chama de “três tipos de teologia” presentes na igreja ao fim do século segundo e início do século terceiro da era cristã. Para efeitos didáticos e buscando aspectos gerais que determinavam suas ênfases fundamentais, Gonzáles escolhe três protagonistas para identificar as três teologias: Tertuliano, Orígenes e Irineu.
Orígenes (185–253), por sua vez, compreendia que o problema humano não era a dívida contraída pela quebra da lei, mas sua incapacidade de contemplar a Deus, isto é, sua ignorância. A salvação, nesse caso, não seria resultado de alguém que pagasse a dívida humana, mas o favor de alguém que lhe trouxesse iluminação para que o mundo da matéria, resultado do pecado, fosse deixado para trás e todos os seres voltassem ao estado original, puramente intelectual, quando poderiam regressar à contemplação de Deus na dimensão absolutamente espiritual, cumprindo assim o propósito para o qual haviam sido criados.
Particularmente, mais me impressiona a compreensão de Irineu (130–202), para quem o problema humano é que estamos sujeitos ao mal e ao Maligno, e necessitamos, portanto, de libertação. Irineu descreve a obra de Jesus Cristo como vitória sobre todos os poderes que oprimem os seres humanos e a criação de Deus. Gonzáles faz um resumo dizendo que Jesus, por sua paixão e ressurreição, “levou cativo o cativeiro e deu dons aos homens”, destruiu a morte, pôs fim à corruptibilidade e manifestou a vida.
Toda vez que você ouvir alguém afirmando a superioridade de seu conjunto de crenças, pergunte a respeito das raízes de sua teologia, seus principais protagonistas e a evolução histórica de seu pensamento. Esses três exemplos apontam para o fato de que a verdade teológica e a heresia são questões de pontos de vistas, e que a história do pensamento cristão é uma referência imprescindível para quem deseja caminhar à luz das Escrituras Sagradas.
Ed René Kivitz é pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo. É mestre em ciências da religião e autor de, entre outros, “O Livro Mais Mal-Humorado da Bíblia”.
Este artigo foi retirado da versão on-line de Ultimato, julho-agosto de 2014, que, neste momento, está disponível apenas a assinantes. Clique aqui e receba gratuitamente o número atual da revista.